divisor de águas

Há pessoas que, definitivamente, são premiadas, ou melhor, eleitas, sei lá, escolhidas por alguma energia sem nome que as diferencia das demais. Não consegui explicar rigorosamente nada com essa frase meio sem sentido que abriu o texto, eu sei, mas isso retrata bem o nó que fica quando você depara com uma dessas criaturas.


Eu tenho uma característica meio doentia de observar tudo quando alguém que chama minha atenção se manifesta. Seja verbalmente, fisicamente, o que for. É um jeito de coçar a cabeça, é a forma como fala, emite sons mesmo sem falar, olha pra esquerda, pra direita, pra cima, pra baixo, fala alto, fala baixo, tique nervoso, mania, como mastiga, balança a perna, dedilha rápido, devagar, não dedilha. Tudo. Eu nunca me dediquei muito a explicação formal, de estudiosos no assunto, para linguagem não verbal. Criei um código de interpretação que me orienta - ou desorienta, não sei, só sei que é ele que sigo - e tenho a presunçosa convicção que acerto sempre em minhas impressões.
De resto tem o conteúdo. Ah, o conteúdo... Aí aparece o que a pessoa quer mostrar. Ou pensa que quer. E o que mostra pro mundo, e o que mostra pra mim.


Em 1988, recém formada, consegui emprego como revisora no Grupo Estado. Foi meu primeiro trabalho como jornalista profissional. Trabalhávamos numa sala enorme, coisa de, sei lá, duzentos metros quadrados. A Revisão era o setor por onde passavam os textos imediatamente antes da impressão. O último refúgio do texto tecnicamente bem escrito, no que diz respeito à ortografia e gramática - algo que não existe mais, a Revisão (alguém dirá 'nem texto bem escrito').
Voltando: nós, os revisores, ficávamos lado a lado, umas quarenta duplas, naqueles mesões altos, com tampo inclinado, que são usados se não me engano por arquitetos.
A coisa era assim: o Zé, uma espécie de contínuo, andava ligeiro por entre essas mesas distribuindo pilhas de textos que desciam da Redação. Entre a Redação e a Revisão, havia um setor lá cujo nome não lembro onde o texto aprovado pela editoria era digitado numa espécie de servidor, palavra por palavra, vírgula por vírgula, com todos os seus erros e acertos. Uma versão impressa dessa cópia era anexada com um grampo à lauda que o repórter usou para escrever sua matéria* e ia pra Revisão.
Então, na pilha do Zé, havia um montão de textos com uma cópia grampeada. Ele jogava cada uma delas nos nossos mesões inclinados pra gente revisar. Um lia a cópia impressa em voz alta e o outro acompanhava com a lauda na mão. Qualquer erro e ou diferença entre a original e a cópia era corrigido e alertado com canetadas na cópia e o Zé passava em seguida pra recolher o que havíamos acabado de revisar.


Era puxado à beça. Eu entrava às 23h e saía às 4h. Mas a gente trabalhava numa alegria que hoje custo a acreditar que vivi. Entre uma lauda e outra, as duplas conversavam entre elas, ou então batiam um papinho com a dupla do lado, de trás, era um barato! De quebra, ao terminar o expediente, nos reuníamos às vezes no boteco ao lado da portaria do Estadão, coisa rápida, pra comer um salgadinho, beber algo, e rir da vida.


Esse espaço físico em que ficava a Revisão, como já disse, era um salão grande com uma vidraça enorme na frente que dava para o corredor dos elevadores.
Um dia, levantei a cabeça e vi caminhando do lado de fora ao longo daquele janelão o cara mais lindo do mundo. Não vou descrever a beleza dele aqui, até porque se fizer isso perco minha credibilidade em relação a conceitos de estética, mas em resumo tratava-se de um novo revisor, de camiseta polo branca e jeans, que entrou na sala, veio na minha direção, sentou na mesa atrás de mim. No dia seguinte, sentou na mesa ao lado. Não falou comigo, não me olhou. No outro dia, sentou na mesa da frente. Eu não sei por que, mas nesse dia, ele alegava gestualmente uma coceira na batata da perna e ficava levantando a calça até o joelho, exibido a panturrilha pra mesa de trás, onde eu estava. O filho da mãe fez direitinho, foi amor a primeira vista, me apaixonei por aquela panturrilha.
Resumo do resumo, a gente saiu, a gente namorou, a gente terminou, a gente nunca mais se viu, depois a gente se reencontrou, a gente casou, a gente viveu feliz e a gente se separou.
Eu não tava tentando ser engraçadinha quando falei de minha paixão pela batata da perna dele, mas não foi só isso o que me cativou...
Foi a inteligência.
Ele era, e foi durante os (no total) dez anos de idas e vindas, a pessoa mais inteligente com a qual interagi. Inteligente o bastante para saber que tinha de ser culto para crescer, prosperar, pra ser feliz, saciar sua infinita curiosidade, dividir esse conhecimento todo com o mundo, vivenciar seu amor pela vida.
Conheci muita gente depois do divórcio, muita. Pessoas de todos os gêneros. Gente culta, gente ignorante, gente rica, gente pobre, feia e bonita e de todas as variações entre esses antônimos todos**. E, mesmo depois da separação, esse moço continuou a ser a pessoa mais inteligente que conheci. Até ontem.


Ontem eu conheci a pessoa mais inteligente de toda a minha vida. De uma sagacidade assustadora, perspicácia atroz. Nunca vi ninguém falar tanto , coerentemente linear, com um raciocínio tão claro, rápido, criativo. Um tipo que certamente gera emoções fortes e variações de humor em torno de si. Os mediocres certamente o invejam; os bons o respeitam. Eu não sei bem onde eu entro nessa descrição porque eu respeito e invejo.
Esse cara, definitivamente, é do tipo premiado, eleito. Daquela estirpe que falei no início, quando me enrolei toda pra começar a escrever. É que deu um nó. Eu quero, mas não quero. Eu posso mas não posso. Eu sei mas não sei. E no meio dessa confusão toda, volta sempre a mesma imagem, que ele fez questão de me mostrar: a contusão na panturrilha...




(*um dos Chefes de Redação com quem trabalhei , lá mesmo no Grupo Estado, anos mais tarde, dizia que não fazemos matéria; fazemos reportagens, textos jornalísticos. "Matéria quem faz é Deus"
**há uma pessoa diferente, que se destaca das demais, e que vou amar pra sempre. Mas essa é outra história) escrito dia 5/9/2010